Os donos da Verdade
Era uma casa que não era verde, era esverdeada. Talvez já tivesse sido azul, branca ou prata, mas agora tinha o mesmo tom em todos os cantos. Um verde monótono, que a cobria por inteiro. Tudo ali ficava verde, assim que entrava na casa. Podia se comprar algo novinho, como um suéter ou um par de meias. Era entrar na casa e pronto. Tudo ficava verdinho, verdinho.
Nesta casa, vivia uma família que se julgava muito, muito importante. Eles diziam ter o maior dos bens, diziam-se detentores de grande poder. Diziam ser os donos da Verdade. Os pais eram os donos da Verdade absoluta: o que diziam era lei, todo mundo tinha que concordar e ponto final. Os filhos eram os donos da Verdade relativa: eram os donos de todas as verdades do mundos, desde que não contrariassem as verdades dos pais.
As pessoas que ali viviam, ao contrário da casa, não eram verdes. Eram acinzentadas. Pareciam fotografias muito antigas que foram esquecidas dentro do armário. Tinham uma não-cor esquisita. E não se incomodavam com isto.
A casa esverdeada não recebia muitas visitas. Isto porque as pessoas acinzentadas não tinham muitos amigos. O que era estranho, porque as pessoas acinzentadas eram novas, saudáveis e bem dispostas. Era para adorarem ter um montão de amigos! E elas gostavam de conhecer gente nova. E, quando as pessoas as conheciam, até gostavam delas. Mas, com o tempo, iam ficando um pouco enjoadas. É muito difícil ser amigo de um dono da Verdade! Você pode ter uma ideia ou um pensamento legal, daí você conta, mas... o dono da Verdade diz que você está errado. Sempre, sempre. Se não é o que ele considera certo, está errado. E sendo ele o dono da Verdade, não há argumento. E é por isso que os donos da Verdade não tem amigos.
Os donos da Verdade, por acharem a Verdade um bem valioso demais, não a deixam respirar. A Verdade deles fica trancada dentro de casa, coitada, sem poder sair para tomar um ar! E aí as ideias das pessoas cinzas ficam assim, sempre presas, sempre trancafiadas a sete chaves. Não passeiam, não conhecem gente, não se inovam. Estão sempre ali, no mesmo lugar, paradas. Ficando cada vez mais velhas, cada vez mais verdes. Vão mofando e mofando, como tudo que tem naquele lugar.
Um dia, os vizinhos da casa esverdeada venderam a casa. E a família que se mudou para ali era genial.
Os novos vizinhos eram pessoas coloridas. O pai era preto, a mãe amarela. O filho mais novo tinha cabelo marrom, a filha mais velha tinha bochechas rosadas. E a avó, de mais de cem anos, tinha cabelos azuis. Tudo ali tinha cor, tudo ali era novo, tudo tinha um frescor e uma suavidade de quem acabou de chegar. Até a avózinha parecia jovem. E era mesmo.
As pessoas acinzentadas estranharam os novos vizinhos. Olhavam aquela casa, sempre cheirosa e com as janelas abertas, com desconfiança. Por que eles deixavam tudo seu exposto? Será que eles não percebiam que suas ideias podiam fugir pela porta?
Aí, aconteceu o que era esperado. Numa tarde, uma criança cinza cruzou na rua com uma criança acinzentada. Disseram oi, e só. Mas eram dois meninos, e dois meninos não conseguem parar no oi. Marcaram de se ver de novo. No dia seguinte, jogaram bola. No outro, andaram de bicicleta. No terceiro dia, o menino acinzentado tentou impor a sua Verdade para o menino do cabelo marrom. Mas o menino do cabelo marrom não se importou com isso. Ouviu o que seu amigo disse e não discordou. Encerrou o assunto, afirmando ' você tem a Verdade, eu tenho a minha!'
O menino acinzentado voltou prá casa injuriado. Que petulância tinha o seu vizinho em não aceitar a sua Verdade. Quase não conseguiu dormir, de tanta raiva. Mas, no dia seguinte, acordou pensando no que acontecera. E, curioso, resolveu ouvir a Verdade do amigo.
E então o menino acinzentado procurou o menino do cabelo marrom e pediu que ele lhe contasse a sua Verdade. E o menino do cabelo marrom riu muito, e explicou que casa um tem a sua Verdade e que todas são válidas. O menino acinzentado ficou confuso.
Com o passar do tempo, o menino acinzentado foi ficando cada vez mais amigo do menino de cabelo marrom e de sua família. E foi descobrindo que o amigo estava certo. Cada um tinha a sua Verdade. Ao notar isto, soube que nem ele e nem seus pais eram donos de Verdade alguma. E foi comunicar isto aos pais.
Os pais dele, claro, não aceitaram as novas ideias do filho e queriam mantê-las ali, trancadas junto das outras. Mas o menino acinzentado já estava deixando de ser cinza, e o pais não podiam fazer nada.
O menino acinzentado, que agora já estava ficando meio clarinho, começou a abrir as janelas da casa para arejar. Aos poucos, as ideias foram saindo, saindo. Voltavam, mas voltavam renovadas. As coisas foram, devagarzinho, perdendo o tom esverdeado.
Demorou ainda bastante tempo até que toda a família acinzentada ouvisse o menino, e seguisse o que ele pedia. Mas, com o tempo, o menino, o ex-acinzentado, conseguiu ser ouvido. Todas as Verdades daquela casa puderam sair para dar um passeio. Conheceram outras verdades, conheceram novas ideias e ideais. E remoçaram-se.
E assim foi que, um belo dia, a casa deixou de ser esverdeada e as pessoas deixaram de ser acinzentadas. E quando alguém, brincando, perguntava: ' e então, como vão os donos da Verdade?', eles apenas riam e diziam: ' a Verdade não tem dono. Ela pára aqui e ali, muda de dono, muda de ares. Tem que se movimentar o tempo todo, tem que se renovar. Senão, não tem jeito. Mofa.'
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