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Em construção...


Em construção




Desde que me entendo por gente, minha casa está em obras. Na sala, nos quartos, na varanda. Às vezes, é meu pai quem quer a obra. Outras vezes, a minha mãe que exige. E noutras ainda, os dois querem juntos! Estas são sempre as maiores: quando os dois estão de acordo, é quebra-quebra que dura meses.

Nunca me incomodei com as obras. Pelo contrário, tinha vezes que eu até gostava! Quando a casa ficava toda bagunçada, eu podia fazer a bagunça que fosse no meu canto. E aí, quando meu pai vinha reclamar, dizendo 'olha a zona que está o seu quarto, Davi! Trate de arrumar, já!', minha mãe sempre vinha em defesa. 'Deixa ele! A casa está toda um caos, aqui é o único cantinho que ele pode brincar em paz... ' E eu me livrava da arrumação por dias, até minha mãe também achar que eu tinha passado dos limites.

Desta vez, no entanto, a obra me atingia diretamente. Meus pais resolveram fazer obra na garagem! Eu não fazia nada na garagem, claro. Até porque a gente não tinha garagem, de verdade: no espaço da garagem, ficava a oficina do meu pai. Em cima da garagem, porém, ficava o terraço. E ninguém ligava para o terraço além de mim. Então, eu vivia lá em cima! Levava papel, tinta guache, canetinha, massinha. Levava bola de gude, vareta e cola para fazer pipa. Levava o que quisesse! Eu podia fazer a sujeira que fosse, meus pais não reclamavam. Afinal, ninguém ia ao terraço mesmo... Até agora.

Meus pais cismaram de fazer um quarto bem grande no lugar da garagem. Disseram que a Vovó está ficando velhinha e, que uma hora destas, não poderia mais ficar sozinha e se mudaria aqui pra casa. Eu não entendi como minha avó não pode morar sozinha se ela viaja sozinha o tempo todo. Mas não quis discutir. Primeiro porque deve ser destas coisas de adulto que a gente não entende. Depois, porque eu ia achar bem bom ter uma das minhas avós morando aqui com a gente. Eu só não estava achando bom perder o meu terraço. E era isto que estava acontecendo: para construir o quarto, meu pai resolveu mudar a oficina dele para o terraço. Ele não perdia o espaço dele, mas eu perdia o meu. E eu estava chateado com isto.

Como toda obra, a da garagem e do terraço também estava demorando um

tempão para acabar. Então, eu continuava aproveitando: sempre que dava, subia ao terraço, me desviava das madeiras e ferramentas do meu pai e criava um cantinho para brincar. A cada dia, o cantinho ia ficando menor, mas eu dava um jeito.

Um dia, quando cheguei da escola, arrumei minhas coisas e subi para o terraço. Quando cheguei... que susto! Meu pai estava lá em cima! Assim, no meio da semana, tinha tirado o dia de folga para ajeitar as coisas da obra. E ele, claro, logo me viu.

  • Davi, o que você está fazendo aqui? Não sabe que a oficina do papai é perigosa para você?

  • É, eu sei, mas...

  • O que é isto, aí?

  • Ah, nada. Só minhas tintas guache e papel. Para eu desenhar, sabe.

  • E você vinha desenhar aqui?

  • Vinha, ué. Eu arranjo um cantinho, e...

  • Mas aqui está uma confusão só! Você não sabe que estamos em obras?

  • É, mas enquanto a oficina não muda de vez, sempre dá para arranjar um cantinho. Enquanto continuar com as obras, eu...

  • Não, senhor! Nada disto! Pode ir já descendo! Vai brincar no seu quarto, no quarto da sua irmã, sei lá. Mas aqui, não! Aqui, estamos em construção.

Fiquei frustrado. Desci, fui até a rua de trás e chamei o Xará. Passamos a tarde toda jogando bola. Me diverti tanto que até esqueci dos desenhos. E, pior: esqueci também de fazer o dever de casa!

Só no dia seguinte, a caminho da escola, é que eu lembrei do dever. Cochichei para minha irmã, sentada na cadeirinha ao lado da minha:

  • Esqueci de fazer o dever de casa.

  • Como? O que aconteceu?

  • Fiquei jogando bola e esqueci!

  • E agora?

  • Não sei. O que você acha?

A Lara pensou e pensou. De repente abriu um sorriso e disse:

  • Já sei! Diz que a Capitu pegou o seu dever!

  • A Capitu? Mas se ela tivesse pego era só eu pedir que ela me devolvia.

  • Bom, é. Você está certo. Então... diz que a Tininha pegou! Porque se a Tina pega, não devolve mesmo! Você sabe que ela não devolve!

  • É, se fosse a Tina... ela não devolvia.

  • O que vocês estão sussurrando aí atrás? - interrompeu a mamãe.

  • Nada, não, mãe! - eu e Lara dissemos juntos. Continuamos o resto da viagem até a escola caladinhos, para a mamãe não desconfiar de nada.

Quando cheguei na escola, a tia Cecília logo pediu:

  • Davi, me dá seu dever de casa.

Pensei no que a Lara tinha dito. Era uma boa desculpa, mesmo. Mas achei que, se eu mentisse, pioraria ainda mais a minha situação. Por fim, disse:

  • Tia Cecília, não vou mentir para você...

E contei toda a história do que tinha acontecido. Quero dizer, a maior parte. Ela me olhou séria e respondeu:

  • Gostei de sua honestidade, Davi. Pelo menos você não inventou uma mentira qualquer.

Respirei aliviado! Estava livre, enfim! Realmente era sempre melhor dizer a verdade.

Quando voltei para casa, minha mãe estava com a cara amarrada. Me chamou e disse de uma só vez:

  • Que história é esta de você esquecer de fazer o dever de casa, hein, 'Seu' Davi?

Sabia que eu estava enrascado! Quando a minha mãe me chamava de Seu Davi – a minha irmã era a Dona Lara – é porque vinha bronca séria! E eu até já sabia qual era bronca. Ela ia dizer 'que a única coisa que eu faço na vida é estudar, este é o meu trabalho, que eu preciso ter dedicação, que para tudo na vida é preciso ter empenho, etc, etc, etc.' Já conhecia o discurso de cor e salteado. E sabia que, se falasse o mesmo que eu disse na escola, não ia colar. Pior: ela poderia ficar ainda mais zangada. Culpar a Capi ou a Tina também não dava. Ela conhecia as duas. Sabia que não pegavam as minhas coisas. Então, vi que só tinha uma saída. Ser criativo.

  • Mas, mãe, quem disse que eu não fiz o dever?

  • Você fez? Então me mostra! Já!

Abri a mochila e, com cuidado, entreguei uma folha dobrada ao meio para a minha mãe. Uma folha em branco. Minha mãe, abriu e disse:

  • Mas aqui não tem nada! Esta folha está em branco!

  • É o meu dever de casa, mãe. Ele está... em construção!

Preciso dizer o que aconteceu? Fiquei de castigo três dias, sem poder jogar bola, ver televisão e nem ligar o computador. A vida é assim, né? Umas coisas estão sempre em construção, outras tem que estar sempre feitas! Nunca mais esqueci de fazer minha lição...

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