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Maria Sapeba - Ana Maria Machado


Maria Sapeba



Há muitos e muitos anos, num lugar que era aqui, tudo era muito diferente.
Tinha muitas árvores com pássaros, muito bicho na mata, muito peixe nos rios e no mar.
E pouca gente, morando em casas de palha e andando sem roupa - os índios. Esses índios caçavam e pescavam muito bem. Com flexas, com armadilhas, ou com um cipó que eles jogavam na água e deixava os peixes tão tontos que dava para pegar com a mão.
Um dos peixes mais gostosos era o que nós chamamos de linguado. Os índios chamavam de marassapé.
É um peixe achatado, que gosta de ficar deitado no fundo do mar, disfarçado de areia. E para se disfarçar, ele foi ficando todo esquisito. Não é como os outros peixes, com um olho de cada lado e uma boca no meio da cara. O lado de baixo dele é inteiro liso e branco. No lado de cima, cor de areia, ficam a boca e os dois olhos. Bem toro e diferente.
Um dia, os índios estavam sossegados na sua caça e pesca, quando chegaram uns barcos enormes, cheios de velas, com uma gente esquisita dentro.
Tinham cabelo na cara, feito rabo de quati. Mas não era.
Tinham umas coisas coloridas no corpo, feito pena de pássaro. Mas não eram.
Tinham uma proteção nos pés, feito casco de caititu. Mas não era.
Era barba, era roupa, era bota.
Eram os portugueses que estavam chegando por aqui. E, imagine só, achavam que estavam descobrindo uma terra onde os índios já moravam havia um tempão.
Gostaram dessa terra e foram ficando, começando a viver junto dos índios, a aprender coisa com eles, a ensinar outras coisas.
Quem mais ensinou e aprendeu, no começo, foram os padres jesuítas.
Em pouco tempo, estavam falando a língua dos índios e morando em aldeias parecidas com as deles.
E fazendo versinhos e teatro para ensinar a eles histórias de Jesus, dos santos e dos anjos.
Esta é uma história que os índios contavam no fim de algum tempo. A história do peixe marassapé ou maracápeba, que eles começaram a chamar de Maria Sapeba. Uma mistura do jeitão índio de explicar os bichos com as histórias que eles ouviram dos jesuítas. Contavam que antigamente Nossa Senhora gostava muito de vir passear na beira da praia.
Jogava o manto azul e branco dela, lá de cima do céu, e ele cobria o mar, fazia tudo ficar bem calmo e azul, só aquela espuminha alva para enfeitar, boa pros anjos virem brincar...
Então ela descia para descansar um pouco.
Mas tinha que voltar quando a maré começasse a encher, que era pro manto dela não atrapalhar quando o mar precisava de onde grande e forte.
Todo mundo precisa ficar um pouco bravo de vez em quando. Mar também precisa. Todo mundo tem que respeitar. Até Nossa Senhora.
Um dia, Nossa Senhora se distraiu catando conchinha na areia e ficou sem saber se já era hora de voltar.
De repente, olhou no fundo do mar ali perto e viu um peixe chamado Maria Sapeba, que nesse tempo era igual aos outros, com olho e boca no lugar.
Então Nossa Senhora achou que o peixe devia saber como estava a maré e perguntou:
- Maria Sapeba, a maré enche ou vaza?
Mas o peixe, em vez de responder, fez careta, boca mole e remedou, fazendo uma voz engraçada:
- Maria Sapeba, a maré enche ou vaza?
Ela perguntou outra vez:
- Maria Sapeba, a maré enche ou vaza?
Mas o peixe estava achando muito divertido ficar implicando com ela. Por isso, só achou graça, fez careta e repetiu de boca torta, falando mole:
- Maria Sapeba, a maré enche ou vaza?
Três vezes Maria Sapeba remedou.
E Nossa Senhora resolveu ir embora, de qualquer jeito.
Mas o menino Jesus, que tudo vê e tudo sabe, não gostou nada daquela falta de respeito com a mãe dele.
E fez Maria Sapeba ficar com a boca torta para sempre, para aprender. E os anjinhos ainda fizeram mais: transformaram Maria Sapeba no peixe mais gostoso de todo o mar, que todo mundo quer pegar e comer.
Por isso Maria Sapeba nunca mais pôde ter descanso.
A não ser quando se achata toda na areia do fundo e fica bem escondida, para ninguém ver.
Coisa que ela logo aprendeu, bem esperta. Para, pelo menos desta vez, fazer uma coisa certa.



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