Um tesouro
Quando eu era pequena, vivia numa cidade pequena, todas as minhas coisas eram pequenas e tudo à minha volta era pequeno. E o meu mundo era enorme, enorme, enorme. Era tão grande que não cabia na minha cidade, nem na cidade vizinha, nem na que vinha depois. Era do tamanho da imaginação de uma criança e por isso ele ia e voltava à lua várias vezes e ainda lhe faltava espaço.
Nem todo mundo via o mundo como eu. Outras crianças, em sua maioria, o tinham da mesma medida. Mas os adultos não entendiam isto. Os adultos o enxergavam nos limites da cidade pequena. E, muitas vezes, o viam ainda menor. Olhavam para frente, sempre para frente, pensando sempre à frente. Esqueciam de virar os olhos e observar as graças do meio do caminho. Não sabiam que deveriam olhar para cima e avistar a lua. Não entendiam que um sonho não tem tamanho. E continuavam vivendo no seu mundo-mundinho.
Os adultos por lá eram assim, menos um. Uma, aliás. Dona Esmeralda. Que não tinha tido filhos e por isso não tinha netos. Mas nos acolhia a todos como se fossemos seus. Seus netos, seus filhos, seus amigos. Seus pupilos, capazes de ver o mundo do tamanho que ele tem. O tamanho do sonho da gente.
Dona Esmeralda brincava com a gente como se fosse, ela mesma, uma criança. Soltava pipa, jogava pião e bolinha de gude, pulava corda e elástico. Ria alto, falava muito, nos ensinava francês. Fazia doces e nos gostava de ver comendo. Depois nos mandava escovar os dentes, porque não queria ninguém sujinho ali. Gostava de nos ver correndo no quintal, para lá e para cá, caindo e ralando o joelho. 'Levanta e sacode a poeira que a dor passa', dizia. E dava um beijo na testa do machucado, para garantir que a dor fosse mesmo embora. E ia, sempre ia.
Um dia, ela não quis brincar. Estava cansada, disse, precisava ficar deitada. No outro, a mesma coisa. No terceiro dia, ainda de cama, nos chamou para ouvir uma história. E contou-nos muitas histórias, em muitos dias seguintes. Histórias de conquistadores, de aventureiros, de desbravadores. Histórias de quem, dizia ela, enxergava o mundo olhando para cima, e não para frente. Histórias de verdade, e outras nem tanto. 'De sonhadores', dizia ela, 'como eu gosto de chamá-los. Ou de loucos, como são pelos outros conhecidos.'
O tempo passou e Dona Esmeralda não conseguia mais brincar, de vez. Sua voz, rouca, foi ficando ofegante, e ela tinha dificuldade de nos contar histórias. E então, surgiu um moço e a levou dali. Foi se tratar, disseram. Viveu ainda muitos e muitos anos, sob cuidados médicos, em uma clínica especializada. Mas não nos deixavam visitá-la, porque criança não podia entrar na clínica.
Passado tanto tempo, olho para trás e vejo tudo o que ela nos ensinou. A olhar para os lados, e observar flores e borboletas que tem no meio do caminho. A parar diante das pedras que surgem, no mesmo caminho, e a encará-las de frente, sem medo. Nos ensinou a pular estas pedras quando, numa brincadeira infantil, nos ensinou a pular a corda. Nos ensinou a enfrentar nossos medos, a vencer monstros, dragões, vampiros. A vencer tudo.
De tudo o que Dona Esmeralda nos ensinou, ficou um pouco. Mas o mais importante, sem dúvida, foi o 'olhar para cima'. Com ela, fomos e voltamos da lua muitas vezes. Aprendemos que o mundo é grande, enorme, gigantesco. Do tamanho do sonho da gente...
De tudo o que Dona Esmeralda nos ensinou, o que mais aprendi foi a sonhar. Dê asas a uma criança que ela voa o mundo todo, indo e vindo sem parar. Porque o mundo pequeno é para a gente grande. Gente pequena tem o mundo grande, grande, grande. Porque olha para cima, voa e sabe sonhar.
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