Uma chuva diferente
Tinha amanhecido um dia comum. Ou, ao menos, era isto o que eu achava. Quando se tem sete anos, os dias são parecidos. Este era um dia de férias, como tinha sido a véspera e seria o dia seguinte. Nas férias, a programação variava, mas sempre fazíamos as mesmas coisas. Íamos ao clube, à casa da vovó, visitar algum primo. De vez em quando íamos até um shopping. Longe, longe, que parecia não chegar nunca. E lá comíamos sanduíche, batata-frita, milk-shake. Coisas que só comíamos quando íamos ali, e por isso valia a pena o tempo da viagem. Mas, neste dia, não iríamos ao clube, ao shopping ou mesmo visitar alguém. Este dia, minha mãe anunciara, iríamos buscar o papai no trabalho. E estávamos radiantes com isto.
Estávamos prontas, minha irmã e eu, logo depois do café da manhã. Minha mãe nos preparou um lanche bem caprichado e disse: 'almoçaremos tarde hoje, quando encontrarmos o papai.' Parecia que, aquele dia, não seria mesmo um dia comum.
Entramos no carro, sentamos. Minha irmã apontava e contava carros, ônibus e caminhões. Eu me distraía rapidamente com esta brincadeira: bastava passar um cachorro na calçada que minha atenção era desviada para o animal, seu andar, suas cores... 'Dois carros vermelhos e um azul. Você está contando?', minha irmã me trazia de volta à sua rotina. Táxis, ônibus, caminhões. Um, dois, dez. 'Sim, estou contando.' E seguíamos viagem. Sempre assim.
Andamos um bom tempo, sem problemas. Até que, de repente, ninguém mais andava. Nenhum carro se mexia- nem para frente, nem para trás. Minha mãe parecia um pouco ansiosa. 'Saímos tarde demais de casa', ela disse, enquanto minha irmã aproveitava o congestionamento para fazer o censo de todos os carros à nossa volta.
Muito devagar, andamos e paramos. E assim seguimos, andando e parando. Minha mãe havia levado uma garrafa grande de água e toda hora nos fazia beber um tantinho. Até que, em algum momento, minha irmã parou sua pesquisa para anunciar: 'preciso fazer xixi!' Minha mãe a olhou em pânico:
Filha, será que você não aguenta esperar um bocadinho?
Preciso fazer xixi, mamãe. E tem que ser agora.
Está bem, eu vou procurar um lugar para estacionarmos o carro. Aguenta aí só um pouquinho.
Mas anda logo, mamãe, que meu xixi quer muito sair!
Aguenta firme, filhinha, vou procurar um lugar.
Minha mãe fez um sinal com a mão, o dedo em seta. Passou na frente de um carro, de dois, de três. Devagar, com minha irmã se contorcendo no banco traseiro, alcançamos um estacionamento. Minha mãe parou o carro já perguntando: 'onde tem um banheiro limpo por aqui?' O garagista indicou a direção, minha mãe pegou cada uma de nós com uma mão e saímos as três correndo.
Não lembro do banheiro, não lembro se eu e minha mãe também fizemos xixi. Mas lembro do que aconteceu em seguida. O lindo dia de sol foi encoberto por uma chuva sem fim. A chuva mais linda que já vi na minha vida.
Tínhamos acabado de sair do banheiro quando um sino deu uma badalada forte, muito forte. Minha irmã e eu começamos a rir. De onde será que vinha aquele barulhão todo? À primeira, seguiram-se outras badaladas. Minha mãe passou a mão na testa suada e disse: 'meio-dia. Estamos atrasadas, vamos procurar um telefone para avisar ao papai onde ele deve nos encontrar.' Começamos a andar para a beira da calçada. E foi então que a chuva começou, exatamente no instante em que o sino badalou pela última vez.
Quase que ao mesmo tempo, surgiram pessoas por todos os lados. Todos riam alto, todos apontavam para o céu. Minha mãe esqueceu o telefonema, riu também. Apontou para o céu e disse: 'olhem meninas, olhem!' E então nós vimos. Do alto do céu, descendo daqueles prédios enormes que tinham por ali, caíam inúmeros pedacinhos de papel, de todas as cores. Voavam sem direção, parecendo pequenas borboletas tontas. O céu estava coberto de cores e o sol parecia querer refletir cada uma delas. Azul, amarelo, vermelho, verde, rosa, prata... Um arco-íris vivo, que se deixava levar pela brisa antes de cair com delicadeza no chão. As pessoas começaram a se abraçar, como numa festa. Um senhor se aproximou de onde estávamos e disse: 'que o ano que vem seja de muita paz para a senhora e sua filhas!' Minha mãe sorriu e disse: 'e para o senhor e os seus, também!'
Outros vieram, outras palavras, alguns apertos de mão e abraços. Ainda demorou até que conseguíssemos encontrar um telefone, ligar e encontrar o papai. Mas, o que fizemos, eu não sei dizer. Porque deste dia, a lembrança que eu tenho é só esta: eu e minha irmã de mãos dadas, rindo, vendo um arco-íris vivo cair sobre nossas cabeças, enquanto, à nossa volta, todos tinham a certeza de um que um ano melhor se iniciava logo...
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